terça-feira, 22 de novembro de 2016

TRABALHO ESCRAVO COM AVAL DE QUEM?




Boanerges Cezário*
No interior de São Paulo, os médicos da Santa Casa da cidade de Palmital pararam de trabalhar porque não recebem seus salários há mais de sete meses.
Atendendo a um pedido da  Santa Casa, a Justiça determinou que os profissionais trabalhassem, sob pena de multa de R$ 2.000,00.
Uma decisão desse naipe é interessante e engraçada, apesar da tragédia do problema.
A beleza poética dessa decisão é que obriga o pessoal a trabalhar sem receber, oficializando, na prática, o trabalho escravo.
E ainda aplica uma multa pelo seu descumprimento, quando os profissionais não tem direito nem ao salário, e


Esse e outros artigos  , você vai ler no livro ILAÇÕES DE UM APEDEUTA, em breve nas bancas e livrarias, uma publicação da Editora Sol.

(...)



Blogueiro*

segunda-feira, 14 de novembro de 2016

We are Kaikó: the biggest carnival of the world

Síldilon Maia Thomaz do Nascimento*



Ele é nigeriano, poliglota. Fala e compreende inglês, espanhol, alemão, francês e diversos dialetos da sua terra natal. Escreve e lê a maior parte destes idiomas também.
Naquela época, ganhava a vida como industriário de plásticos, mantendo negócios na Alemanha e na Espanha. Seus pais moravam na Flórida.
Encantado com as belezas do Brasil (ele já conhecia algumas cidades) e com as imagens paradisíacas que tinha visto de Natal (cidade que só conhecia através do google), decidiu visitar o Rio Grande do Norte no carnaval daquele ano.
Em Natal, foi a um badalado barzinho onde conheceu uma jovem que compreendia o seu inglês, mantendo com ela um rápido diálogo:
– I want see the carnival – disse o desavisado turista.
– What? Carnival in Natal City? – questionou a nativa, já com ares de deboche.
– Yes. The brazilian carnival.
– Lol (lots of laughs = muitas gargalhadas – ela era brasileira, mas, quando falava em inglês, também ria em inglês). There is no carnival in Natal City.
– No? There is no carnival here?
– No. You want see carnival? You have go to Caicó. Caicó City.
– Kai… cóó? Kaicó? – ele não conseguia pronunciar Caicó.
– Yes. Caicó! The biggest carnival of the world!
– The biggest carnival of the world? It is true?
– Yes. THE BIGGEST CARNIVAL OF THE WORLD!!! (quando percebia que alguém estava observando ela falar em inglês, a jovem costumava falar um pouco mais alto).
– Thanks. Thank you very much. Good bye.
– Bye, bye.
E rapidamente ele saiu do barzinho. Já na saída, passou a gritar:
– Táxi, táxi, táxi.
Com a parada do primeiro taxista, entrou no veículo e com muita empolgação falou:
– I go to Kaikó!
– Caicó?
– Yes, Kaikó!!!
– Caicó??? – o taxista não conseguia acreditar no que estava ouvindo e insistia para que o nigeriano confirmasse.
– Yeessss, Kaikó! I WANT SEE THE BIGGEST CARNIVAL OF THE WORLD!!! – ele já quase gritava para que o taxista entendesse e acreditasse.
– Ok, ok.
Bandeira 02 (ainda não inventaram bandeirada maior no Brasil). Entre Natal e Caicó a distância média é de 260 quilômetros. Naquele dia, entretanto, eles precisaram percorrer quase 600 quilômetros para chegar ao destino. O taxista pensou que agradaria o turista fazendo um caminho mais longo (mesmo sem combinar com ele), pois, afinal, tudo era novidade.
Custo da corrida: R$ 2.500,00, pagos em espécie. O que importa é a satisfação do cliente, diria o taxista.
Desembarque em Caicó por volta das 03:30 horas, na madrugada da sexta para o sábado de momo. E o primeiro desafio: conseguir um lugar para se hospedar.
Cidade lotada. O internacionalmente famoso Ala Ursa, o Bloco do Magão, já havia encerrado o seu percurso há várias horas. Marquinhos Carrera e a Banda Sakulejo cantavam Sai do Chão na Ilha de Santana em tom de despedida da noite. Muita gente na rua: caminhando, deitada no chão, bebendo nas sedes dos blocos, “coisando”… Cheiro de cerveja pisada no asfalto, gente suada esbarrando por todos os lugares. Paredões de som e poluição sonora sem controle.
Finalmente, surge uma vaga de hospedagem no Hotel Regente. Apenas por uma noite, diria o recepcionista: “os demais dias estão reservados”.
Coube ao turista internacional alimentar-se de um sanduíche, sabor “daqueles”, no quiosque de Dona Aíla, o único aberto 24 horas na cidade. Para os padrões caicoenses, era uma madrugada muito fria: apenas 30ºC às 04:00 horas da manhã.
Na manhã do sábado, o aventureiro turista se deu conta de que havia perdido um dos seus cartões de crédito e saiu do hotel em busca de um cartão telefônico para, colocando créditos em seu celular pré-pago, fazer uma ligação para a operadora e pedir o cancelamento do cartão perdido.
Ah, quase esqueço de contar um detalhe: ele não falava, não entendia, não escrevia, não lia, não pensava e não fazia tudo, inclusive nada, que envolvesse o idioma português. E sábado era dia de feira livre. Ou seja, a cidade estava repleta de pessoas falando caicoês, uma variação do português brasileiro falada em Caicó e adjacências.
Comprar o cartão contendo crédito para o celular foi relativamente fácil: na Rodoviária Manoel de Neném, bastou mostrar o celular e apontar para o cartão. O preço estava escrito na parede e a vendedora só levantou a vista do whatsapp quando o viu apontando para o cartão e quando precisou receber o dinheiro. Sem conferir o valor pago, retomou a concentração na conversa eletrônica. A linguagem pareceu universal, já que após o protocolar “good morning” do cliente, tudo aconteceu sem a necessidade de utilização da fala.
Com os créditos do celular e o próprio aparelho celular em mãos, a primeira barreira linguística: todos os comandos para inserção dos créditos eram em português. Compreensão zero.
Após algumas tentativas frustradas de ativação dos créditos, o nigeriano resolve pedir ajuda aos populares que transitavam em frente ao Banco do Brasil de Caicó. Adotou um procedimento aparentemente simples: abordava o transeunte, dizia-lhe “help-me” e mostrava o aparelho celular, que estava em sua mão direita, apontando em seguida para o cartão com os respectivos créditos, que era segurado na outra mão.
Nosso nigeriano tinha características físicas pouco comuns em Caicó. Alto, com mais de 2 metros de altura. Usava a cabeça raspada, com careca reluzente, praticamente lustrada. E, como há de se esperar da maioria do povo nigeriano, negro. Vou mais além. Não era apenas negro no “padrão convencional” brasileiro. Ele tinha o último tom de pele, quase azul petróleo.
Em meio à multidão que transitava no carnaval caicoense, nos padrões elite branca, certamente seria um ponto de referência dentro do Bloco do Magão.
Cada transeunte abordado ouvia o “help-me”, olhava para o aparelho celular, olhava para o cartão e permanecia estático. E o nigeriano prosseguia abordando outras pessoas: “help-me”, mostrava o celular e apontava para o cartão. E mais uma pessoa ficava estática olhando para ele.
Com o passar do tempo, naturalmente, aquelas pessoas que ali permaneciam estáticas aos britânicos pedidos de ajuda foram se aglomerando. Em bom e velho caicoês: começou a juntar gente.
Passados 30 minutos, o nigeriano já se encontrava cercado por aproximadamente 50 pessoas que lhe rodeavam. E prosseguia: “help-me”, mostrava o aparelho celular e mostrava o cartão.
Observando aquela cena, dois matutos desconfiados (perdoem-me a redundância, já que todo matuto é desconfiado por natureza), que o olhavam guardando uma certa distância, começaram a dialogar:
– Rapaz, matei a charada.
– De quê?
– Você não entendeu ainda? Você é muito burro.
– Não consegui entender não.
– Junte os fatos: o cara é um negão, último tom de pele, de quase 2 metros de altura, e está falando inglês no centro da cidade, em pleno carnaval de Caicó. Entendeu?
– E daí?
– Você ainda não entendeu?
– Não.
– Está na cara, é “óvibio”: só pode ser um traficante internacional de drogas!
– É verdade! Como a gente não havia notado isso antes? Vamos ligar para o polícia agora mesmo.
E saíram em busca do primeiro orelhão disponível. Discaram 190.
– Alô, é da Polícia Militar?
– Sim, prossiga – disse a telefonista com a voz fanha.
– Tem um traficante internacional de drogas aqui no centro de Caicó, em frente ao Banco do Brasil, que veio para o carnaval acabar com a nossa juventude.
– Pois não. Estaremos providenciando uma guarnição que estaremos encaminhando para atende-lo, senhor.
– Sejam rápidos. O homem é muito grande, violento e perigoso. Está sendo preciso mais de 50 pessoas para contê-lo. Tem umas pessoas até argumentando para ver se ele fica calmo, mas ele fica dizendo umas palavras “embulatórias” e ninguém entende nada.
Mais cinco minutos se passaram. Barulho de sirene (uau-uau-uau-uau) e de repente chega uma viatura policial, aquelas montadas num Gol Mil. Desce a guarnição inteira: um cabo e dois soldados.
O cabo, chefe da guarnição, logo se adianta e diz:
– A CASA CAIU, NEGÃO!
– What? I don’t understand!
– Hein? “Andy estende” o quê, rapaz? Respeite a polícia!
– I don’t understand!
– Teje preso, negão! Você agora vai prá DP. E hoje você fala português, querendo ou não.
Com muita dificuldade, colocaram o turista na viatura. Isto porque, pelo seu tamanho, era complicado fazê-lo entrar no banco traseiro do Gol Mil. O jeito foi conduzi-lo no banco do carona mesmo.
Guarnição a postos. O motorista toca na chave no carro, ele “sola” a primeira vez (nhec, nhec, nhec) e não pega. “Sola” a segunda, a terceira, a quarta e a quinta. Não pega.
– Empurrem aí! – gritou o chefe da guarnição para a população.
Povo empenhado na atividade policial, e a viatura se foi. Barulho de sirene pelas ruas (uau-uau-uau-uau). Seguem rumo à delegacia de polícia.
No caminho, porém, um dos policiais resolve fazer uma ligação:
– Alô, é do plantão da Rádio Rural?
– Sim, pois não – disse a telefonista com a voz fanha.
– Aqui é da polícia militar. Acabamos de deter, no centro de Caicó, em frente ao Banco do Brasil, um traficante internacional de drogas que veio para o carnaval acabar com a nossa juventude!
– Prossiga, senhor.
– Ele já deu muito trabalho. Foi preciso mais de 50 pessoas para contê-lo enquanto a viatura chegava. E, depois que chegamos, ele ainda ficou desacatando a polícia, falando palavras “embulatórias”. Estamos conduzindo ele para a DP agora.
– Pois não. Estaremos providenciando os repórteres plantonistas que estaremos encaminhando para acompanha-lo, senhor.
Barulho de sirene no rádio (uau-uau-uau-uau). “Plantão rádio rural, cobrindo o carnaval de Caicó, o melhor carnaval do mundo. Repórter Alexandre Costa”:
– Bom dia, Rádio Rural. Acaba de chegar a informação aos nossos estúdios que a polícia militar acaba de realizar a detenção de um traficante internacional de drogas que veio para o carnaval de Caicó acabar com a nossa juventude. Ele acaba de ser encaminhado para a DP e a nossa equipe de repórteres acaba de se deslocar para lá. Mais detalhes em instantes.
Barulho de sirene no rádio (uau-uau-uau-uau).
Chegam na delegacia de polícia. Um batalhão de repórteres já os esperava, todos com celulares, notebooks e máquinas fotográficas a postos. Já havia passado alguns minutos desde que os blogs policiais mais badalados, Sidney Silva e Jair Sampaio, publicaram chamadas noticiando o ocorrido e alertando: “mais detalhes em instantes”…
Descem da viatura. Várias fotos do nosso turista com cara de assustado (click, click, click). Tentam entrevista-lo:
– O que o senhor tem a declarar para a população de Caicó e as pessoas que vieram passar o carnaval aqui? Rádio 106 fm, ao vivo.
– I don’t understand!
– Porque o senhor escolheu o carnaval de Caicó para fazer tráfico internacional de drogas e acabar com a nossa juventude? Rádio Rural, ao vivo.
– I don’t understand!
– O senhor relaciona o crescimento observado nos últimos anos no carnaval de Caicó com esse interesse momentâneo e repentino de organizações criminosas de abrangência internacional? Rádio Comunitária, ao vivo.
– I don’t understand!
– Cabo, como o senhor avalia essa atuação rápida e efetiva da polícia militar na captura deste elemento de altíssima periculosidade?
– Positivo. Como vocês podem ver, o nosso efetivo conseguiu montar uma operação de guerra para capturar este elemento. Vários policiais envolvidos e a participação decisiva da população. Ele agora vai ver o sol nascer quadrado.
– E como o senhor avalia essa dificuldade linguística enfrentada na comunicação com o elemento?
– Positivo. Ele vem desacatando a polícia, tentando nos desmoralizar desde o momento em que foi capturado, sempre falando palavras de baixo calão como essa que vocês acabaram de ouvir. Mas eu já o adverti que hoje ele irá falar português, por bem ou por mal.
Entram na delegacia. Enquanto os dois soldados cuidam de registrar o B.O., o cabo conduz o agora prisioneiro à presença do delegado plantonista.
– Delegado, aqui está o traficante internacional de drogas que veio para o carnaval de Caicó acabar com a nossa juventude.
– Oh, que polícia eficiente! Pode conduzi-lo ao xadrez e trazer a droga para a gente pesar – disse o delegado com a voz rouca e sonolenta.
– Droga?
– Sim, a droga. Ele não é um traficante internacional de drogas que veio para o carnaval de Caicó acabar com a nossa juventude? Ou eu ouvi errado? Quantas toneladas foram apreendidas?
– Sabe o que é, delegado…
– Sabe o que é o quê? O senhor me trouxe um traficante internacional de drogas sem apreender droga nenhuma?
– Mas, delegado, o elemento é um traficante internacional de drogas que veio para o carnaval de Caicó acabar com a nossa juventude!
– Ok. E onde está a droga?
– ESTÁ IMPLÍCITO!!!
– Ok, ok. Raciocine comigo. Ele é um traficante internacional de drogas, correto?
– Sim.
– Então a competência é da Polícia Federal. Vamos encaminhá-lo para lá. Traga os documentos do elemento.
Passaporte em mãos. Ligam para a Polícia Federal.
– Polícia Federal? Aqui é o delegado plantonista de Caicó. Parece-me que a polícia militar prendeu um sujeito estrangeiro, com características suspeitas, e o que tudo indica é que ele seja realmente um traficante internacional de drogas que veio para o carnaval de Caicó acabar com a nossa juventude. Copiado?
– Pois não, senhor. Estaremos encaminhando para o setor competente. Antes disso, para que eu possa estar preenchendo o cadastro e adotando as providências iniciais, queira estar informando quantas toneladas foram apreendidas – disse a telefonista com a voz fanha.
– Olha, ao que me consta, até o momento não foi apreendida nenhuma droga.
– Compreendo, senhor. Então queira estar informando o número do passaporte do prisioneiro para que eu possa estar consultando a situação dele na imigração, senhor.
– Pois não. Anote aí… (segue o delegado, com voz rouca e sonolenta, informando o número do passaporte, o nome do turista, a sua filiação, nacionalidade, data de nascimento, local de nascimento, hora de nascimento, data da entrada no Brasil, número da passagem aérea de vinda, número da passagem aérea de volta, escolaridade, formação profissional, habilidades para atividades domésticas, habilidades para tarefas manuais, dentre outras informações que o sistema solicitava). Copiado?
– Pois não, senhor. Queira estar aguardando alguns instantes que o sistema está fora do ar.
A ligação é pausada e entra o som da Quinta Sinfonia de Beethoven. Enquanto a música tocava na ligação telefônica, o batalhão de repórteres aumentava e a cada minuto também aumentavam as especulações em torno do que estaria acontecendo dentro da delegacia. Os plantões jornalísticos das emissoras locais de rádio já estavam transmitindo ao vivo os acontecimentos, diretamente do local. Todos os blogs da cidade já cobriam o acontecimento em tempo real.
O cabo sai para dar a notícia, em primeira mão, de que o caso seria transferido para a Polícia Federal. A imprensa passa a noticiar o fato em verdadeiro êxtase, ou, em caicoês: em “polvorosa”.
Mais alguns minutos se passam. A Quinta Sinfonia de Beethoven para de tocar.
– Senhor? – disse a telefonista da Polícia Federal com a voz fanha.
– Pois não – respondeu o delegado.
– Estarei encaminhando sua ligação para o setor competente, senhor.
Ligação sendo transmitida. Passa a tocar a valsa Danúbio Azul.
Mais alguns minutos e atende a segunda telefonista atende:
– Senhor? – disse a segunda telefonista com a voz fanha.
– Positivo – responde o delegado.
– O setor competente analisou o caso do nigeriano, verificou que a sua situação está regular na imigração e, como não foi apreendida droga nenhuma, decidiu não assumir o caso, senhor.
– Ok, ok.
– Foi um prazer atende-lo, senhor.
O delegado retorna à sala de lavratura de flagrantes e se dirige novamente ao cabo. Nesse momento, até a sua sonolência e rouquidão já haviam passado.
– Cabo, pela última vez, onde está a droga?
– Delegado, precisamos de mais 40 minutos para empreendermos diligências juntamente com o elemento preso e o convencermos a indicar o lugar onde ele escondeu a droga.
– Ok, ok.
Retiram o nigeriano do xadrez. O cabo se dirige a ele:
– Negão, vamos para casa.
– What? I don’t understand!
– Home, sweet home, negão.
– I’ll go home?
– Yes.
– Oh, thanks. Thank you very much.
Saem da delegacia. A reportagem entra ao vivo entrevistando o cabo:
– Estamos indo buscar a droga.
Som de sirene no rádio (uau-uau-uau-uau). Rádio Caicó ao vivo: “a expectativa é que seja apreendida cerca de uma tonelada de drogas. Mais informações em instantes…” (uau-uau-uau-uau)
Som de sirene nas ruas. Mais duas viaturas passam a reforçar a guarnição. Seguem para o Hotel Regente e, lá chegando, os soldados, devidamente reforçados, sobem para revistar o quarto do nigeriano juntamente com ele próprio.
Reviram malas, guarda-roupa, colchões, frigobar, lixeira… Nada encontrado. Acompanhando a diligência e já sem paciência, o cabo se dirige à tropa e anuncia: “deixa que eu resolvo”. Ao lado da cama e como num passe de mágica o eficiente cabo faz aparecer na palma da sua mão uma pequena quantidade de maconha (cerca de 2 gramas), queimada e embrulhada em parte de papel que, um dia, deve ter formado um cigarro artesanal. Em caicoês: uma “piúba”.
– Soldados, vocês são muito incompetentes. Mesmo com um traficante internacional de drogas capturado e disposto a colaborar, não conseguem apreender nada. Negão, que porra é essa, negão?
– I don’t understand!
– Lá vem você de novo com essa história de “Andy estende”, querendo desmoralizar a polícia…
– Whatt?
– Teje preso de novo, rapaz!
Barulho de sirene pelas ruas (uau, uau, uau, uau). Seguem novamente para a delegacia.
Repórteres novamente a postos.
– Cabo, conseguiram apreender a droga?
– Sim. Já apreendemos uma certa quantidade guardada no hotel. Agora vamos nos empenhar no trabalho investigado para descobrir o lugar onde ele escondeu o carregamento internacional.
Adentram à delegacia. O delegado, incomodado com os 43° que fazia naquele horário (10:00 horas da manhã) e impaciente com o ventilador de teto que girava em super câmera lenta, interrompe a sua atividade refrescante com o abanador e, em seguida, retira os pés de cima do birô para ouvir o cabo:
– Delegado, delegado, aqui está a droga – disse o cabo estendendo a mão para mostrar a droga apreendida.
– Você tá de sacanagem comigo, né, cabo? Onde estão escondidas as câmeras da pegadinha do Gugu? Mostra para mim, vai…
– Não, delegado. Fizemos uma varredura e já começamos a localizar parte do carregamento trazido para o carnaval de Caicó.
– Porra, cabo. Se você quer me foder, começa me beijando, pelo menos!
– Mas, delegado…
– Como é que vocês prendem um traficante internacional de drogas que veio para o carnaval de Caicó acabar com a nossa juventude e me aparece com uma “piúba” de cigarro de maconha?
– Delegado, o homem é um traficante internacional de drogas…
– Suma daqui, cabo!
– Como, delegado?
– Suma daqui você, sua guarnição, a porra desse negão…
– Whatt? I d’ont understand! – ele não entendia nada do que falavam, mas, quando ouvia a palavra “negão”, já conseguia saber que era com ele.
– E a maconha, delegado?
– Maconha? Você chama isso de maconha? Suma com essa porcaria também!
A guarnição inteira sai cabisbaixa da delegacia. O batalhão de repórteres corre para entrevistar o cabo:
– Cabo, e aí? O que aconteceu com o traficante internacional? Já foi transferido para a Polícia Federal? Vai descer para o Pereirão (este é o nome popularmente dado à Penitenciária Estadual do Seridó, localizada em Caicó)? Já conseguiram identificar onde ele esconde as toneladas de droga que trouxe para o carnaval de Caicó para acabar com a nossa juventude?
– Infelizmente, após todo o trabalho policial, a Justiça resolveu não fazer a parte dela… – disse o cabo, em tom de decepção.
As viaturas militares seguiram. Alguns minutos após, sai da delegacia o nigeriano. E o batalhão de repórteres, que já começava a se dispersar, corre para entrevista-lo:
– O que o senhor tem a declarar sobre o ocorrido?
– Help-me! – disse o nigeriano, apontando para o celular na mão direita e, em seguida, para o cartão com créditos para o celular, segurado na mão esquerda.
Os repórteres se entreolham:
– O que ele está dizendo? – disse o primeiro.
– E eu sei lá… – disse o segundo.
– Vamos embora – disseram os demais.
A equipe de repórteres vai embora. Havia outra notícia a ser coberta. O som que puxa o bloco Ala Ursa havia quebrado e o seu presidente, o popular Magão, convocou uma entrevista coletiva na sede do bloco para ameaçar que não sairia naquele dia. A equipe da prefeitura, responsável pela organização do carnaval, estava em “polvorosa”. Já não se falava mais no tráfico internacional de drogas que ameaçava a juventude caicoense.
E o nigeriano seguiu a pé em busca do seu hotel. Afinal, sua diária estava sendo encerrada e ele precisava encontrar outro lugar para se hospedar. Por sorte, antes de chegar ao hotel, encontra um ônibus turístico que chegava da cidade de Natal. E a mesma jovem que ele havia conhecido na primeira página desta história, por coincidência, desce do ônibus acompanhada de uma legião de jovens igualmente brancas, loiras, belas e bem vestidas, que usavam roupas de grifes famosas e da moda, além bonés em que estava escrito “#aviãozeiro”. Elas entoavam estranhas canções que em muito lembravam os batuques tribais que ele havia conhecido na infância, em sua terra natal. A jovem conseguiu entender a necessidade do nosso turista internacional, vindo a ativar os créditos para o seu celular.
Chegando ao hotel, o seu aparelho celular toca. Era uma ligação internacional, direto da Flórida. Do outro lado, a sua mãe:
– Snif, snif, snif.
– Mom?
– Snif, snif, snif.
– Mom, how are you?
– Snif, snif, snif.
– Mom, please do not cry! How are you?
– Where did I go wrong? (onde foi que eu errei? – frase utilizada pelas mães de todo o planeta Terra)- Mom, I love you. I do not understand what you’re talking about..- You are an international drug trafficker?
– Whatt? No, mom. Never!
A mãe do nigeriano, estando sem notícias suas (o telefone celular dele, enquanto estava sem créditos, não recebia ligações fora da área aonde é cadastrado), inseriu seu nome no google e fez uma busca: rapidamente apareceram mais de 1.000 citações, todas replicadas muitas vezes, dando conta da prisão de um traficante internacional de drogas que foi para o carnaval de Caicó acabar com a juventude local. Detalhe: todas as publicações continham fotos.
– Mom, the brazilian police is very good.
A policeman helped me to put credits on the phone.
– No, asno! You can see google?
– One moment…
Bem, até este momento, nosso turista não havia entendido nada do que tinha acontecido. Desesperado com a insistência da sua mãe que não parava de relembrar o assunto ao telefone (em caicoês, fazendo “muído”), nosso nigeriano passa a chorar também.
Check-out no hotel.
Agora ele estava na rua, de malas nas mãos, chorando e recebendo ligações da sua mãe a cada 5 minutos. Era 14:00 horas e fazia 45° na sombra. Um trânsito infernal. A cidade inteira estava se deslocando para o clube onde aconteceria o show de Aviões do Forró que, segundo anunciavam, era a maior banda de forró do mundo.
Já era noite quando surgiu uma vaga para se hospedar na Pousada Porto Belo, do empresário Tarcísio, também conhecido como Vaca Velha. O Bloco do Magão estava no meio do percurso e cantava as suas típicas marchinhas de carnaval:
– “Balança o saco meu bem, balança o saco/ Balança o saco de confete e serpentina/ Eu vou meter o dedo, eu vou meter o dedo nas cordas do violão/ Eu vou cair de língua, eu vou cair de língua no sorvete de limão/ Tá todo mundo dando volta e meia no salão”.
Até os policiais que atuaram na prisão do nigeriano passaram acompanhando o bloco das virgens, todos travestidos de mulher. Viraram para ele e começaram a cantar:
– “Ei, você aí, me dá um dinheiro aí, me dá um dinheiro aí”.
E ele continuava ali, de malas nas mãos, levando empurrão e esfrega de gente suada, sentindo respingos de cerveja que caiam do céu de vez em quando, e sem entender NADA. Ainda passou do lado dele um moleque de 5 anos de idade na “cacunda” do pai e disparou um spray de espuma na sua cara.
E lá segue ele para a nova hospedagem, sem entender NADA.
No dia seguinte, às 04:00 horas da manhã, já acorda com as insistentes ligações da sua mãe para saber se ele teria sido preso novamente. E as ligações se repetiram ao longo do dia, sempre com intervalos de 5 ou 10 minutos entre uma e outra. Oh, velha para fazer muído!
Na pousada de Vaca Velha, após o café repleto de comidas regionais, das quais ele só conseguiu identificar ovo frito (buchada de bode, panelada, fritada e mocotó de boi faziam parte do cardápio), tentou pedir a indicação de um advogado a um dos funcionários do estabelecimento:
– I want a lawyer.
– O que?
– Lawyer, abogado…
– Vôte! – espantou-se a funcionária.
Em caicoês, “abogado” se diz daquela pessoa que recebeu os trabalhos de um “bogueiro”. Um outro funcionário, percebendo a conversa, resolveu dela participar:
– Vem cá, esse aí não é o negão que foi preso sendo acusado de fazer tráfico internacional de drogas e que iria acabar com a nossa juventude?
– Sim, ele mesmo. Eu vi a matéria no blog de Jair Sampaio.
– Será que o senhor pode repetir o que deseja?
– I want a lawyer.
– O que?
– Hein?
– Lawyer, abogado…
– Ah, deve ser ADVOGADO!
– Yes, abogado!
– Deixa eu falar com Vaca Velha. Certamente ele vai precisar de um advogado internacional e eu não conheço nenhum.
E seguem para falar com o patrão…
– Seu Vaca Velha, o senhor conhece algum advogado internacional? Acho que o hóspede nigeriano precisa de um…
– Eu, não! Mas, porque você não tenta falar com Dr. Nilson Dias?
Só um parêntese: Dr. Nilson Dias é médico, cirurgião geral. Mas, pela experiência de vida, normalmente recebe pedidos de conselhos a respeito dos mais variados assuntos, desde problemas relacionados à saúde (dor nas costas, esquecimento, impingem, etc), até temas que não guardam nenhuma relação com a sua atividade profissional (política local, estadual e internacional; serviços mecânicos, lugares onde se possa comprar peças para VW Brasília, desilusões amorosas, “roedeira”, etc). Neste caso específico, queriam apenas a indicação de um advogado para o caso, e telefonaram para ele:
– Dr. Nilson, o senhor lembra daquele tempo em que o senhor era prefeito e estavam querendo lhe prender?
– Sim, claro, eram meus adversários políticos criando fantasias.
– E ainda estão querendo ou já foi resolvido?
– Foi resolvido sim.
– Aquele seu advogado é internacional?
– Mas é claro!
E, assim, o nigeriano chegou até mim. Eu sabia meia dúzia de palavras em inglês, mas consegui entender o que ele queria na consulta que marcamos:
– I want to remove google my name and photos.- You want to remove google his name and photos? I’m sorry, but that’s impossible.- Oh shit. My mother will not stop crying.- Sorry. You were the victim of a Caicó typical product.
– What?
– This tipical product is: FOFOCA. We are Caicó: the biggest carnival in world.
***

*Síldilon Maia Thomaz do Nascimento é Advogado militante; mestrando em Direito Processual pela Unicap; especialista em Direito Processual Civil e em Direito e Processo Eleitoral, ambos pela UnP; bacharel em Direito pela UFRN; ex-professor dos cursos de Direito da UFRN, campus Caicó/RN, e da UnP, campi Natal/RN; e do curso de Ciências Contábeis da Faculdade Católica Nossa Senhora das Vitórias, campus Assú/RN.
Sharing

 


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