Edmílson
Dantas de Morais (UFRN)[1]
1 Introdução
O crítico literário britânico
Terry Eagleton, mencionando o formalista russo Roman Jakobson, assim se expressa:
Talvez
a literatura seja definível não pelo fato de ser ficcional ou ‘imaginativa’,
mas porque emprega a linguagem de forma peculiar. Segundo essa teoria, a
literatura é a escrita que, nas palavras do crítico russo Roman Jakobson,
representa uma ‘violência organizada contra a fala cotidiana’. A literatura
transforma e intensifica a linguagem comum, afastando-se sistematicamente da
fala cotidiana. (EAGLETON,1997, p. 2).
Propõe-se, no presente artigo,
fazer uma análise da obra A Metamorfose, de Franz Kafka, à luz do
procedimento da singularização (estranhamento), teoria defendida por Vítor
Chklovski.
A definição de Eagleton informa
que a literatura “emprega a linguagem de forma peculiar” e, indo ao encontro da
teoria de Vítor Chklovski, o crítico literário britânico informa que ela
“intensifica a linguagem comum afastando-se sistematicamente da fala
cotidiana”.
O procedimento da singularização
ou do estranhamento tem essa proposta de linguagem afastada da fala cotidiana
com a intenção de provocar no leitor um efeito de estranhamento.
Desde as primeiras linhas de A
Metamorfose, verifica-se o procedimento da singularização, conforme será
visto na análise.
O trabalho se desenvolverá em
três etapas: na primeira parte do trabalho, serão abordados aspectos da obra A
Metamorfose, tais como o enredo e algumas interpretações; em seguida, será
abordada a teoria da singularização de Chklovski, com citações de exemplos extraídos
do artigo “A Arte como Procedimento”. Exemplos de outras obras literárias serão
também vistos neste tópico; e, na terceira parte deste estudo, analisam-se fragmentos
da novela A Metamorfose, que se adequam à teoria de Vítor Chklovski.
2 A Metamorfose - uma novela inquietante
A Metamorfose, de Franz Kafka (1883-1924)[2], foi escrita em 1912 num espaço de 20 dias (entre
17 de novembro e 7 de dezembro), porém só foi publicada no ano de 1915. Escrita
a dois anos do início da Primeira Guerra Mundial, o livro de Kafka reflete o
clima de agonia e pessimismo vivido na Europa do início do século XX. O ano de 1912
foi aquele em que o escritor de Praga descobriu sua forma típica de fazer
ficção, inaugurando o famoso estilo kafkiano, que consiste, basicamente, em tratar
como natural o que nos parece angustiante e incomum e, muitas vezes, fantástico.
A Metamorfose narra a história trágica
de Gregor Samsa, um caixeiro-viajante, funcionário exemplar, que acorda, certo
dia, transformado num inseto monstruoso. Em um ambiente de pesadelo, a novela
transmite ao leitor a sensação de excentricidade e estranhamento que assalta o
protagonista, que, pouco a pouco, vai tomando consciência de que se transformou
em um parasita diante de seus parentes mais queridos. A princípio, as suas
preocupações passam por pensamentos práticos relacionados com a sua
metamorfose, principalmente com o fato de estar atrasado para o trabalho.
Depois, as preocupações passam para um nível psicológico e sentimental. Gregor se
sente magoado pela repulsa dos pais à sua metamorfose. Apenas a irmã se digna a
levar-lhe alimento, mas, mesmo assim, repulsa e medo de sua parte também se
manifestam.
O ponto
culminante da obra é atingido quando Gregor Samsa deixa de ser capaz de se
expressar na linguagem humana. Gregor perde a capacidade da fala e da escrita
e, com isso, de se comunicar. Mas a metamorfose de Gregor vai além da
modificação física e cognitiva: embora não seja mais capaz de se comunicar pela
linguagem, seus pensamentos, raciocínios e sentimentos continuam sendo humanos.
Gregor passa também a analisar as coisas que o rodeiam com muito mais atenção.
Gregor
Samsa era o filho que sustentava a casa. Seus pais, avançados em idade e
de saúde mediana, dependiam inteiramente do jovem, assim como sua irmã
mais nova, Grete (a violinista). No dia em que Gregor se acorda transformado em
inseto, não vai trabalhar. Com isso, todos se dirigem para o quarto e
chamam por ele. Até o chefe de Gregor aparece (o que já dá indícios de
como ele era explorado em seu serviço de caixeiro-viajante). Quando descobrem
o ocorrido com o filho, todos se apavoram, mas, com o passar do tempo, buscam
formas alternativas de suplantar as dificuldades – com isso, os que antes eram
incapazes de trabalhar se tornam trabalhadores (o pai, a mãe e, até
mesmo, a irmã).
Cuidar
do inseto torna-se um fardo para a família, que passa a desprezá-lo;
a irmã já não quer mais limpar o quarto do irmão, nem liga
se ele está comendo ou não, e nem tenta manter
alguma comunicação com ele. Isso se torna muito doloroso para Gregor
que tem consciência de sua situação perante os seus e
perante a sociedade.
Para
completar o orçamento doméstico, a família aluga um dos quartos para três
inquilinos impertinentes. Toda a tralha do quarto alugado é jogada no quarto de
Gregor, o que lhe incomoda, pois isso lhe tira o espaço para movimentar-se no
quarto.
A
arrumação da casa é confiada a uma velha faxineira viúva e ossuda (Ana), que
humilha o pobre Gregor de várias maneiras.
Em
muitos momentos, ele se enfurece e se entristece com o que vive, e ocorrem
cenas marcantes como a que Gregor rasteja pela sala do apartamento, e Grete fica
muito nervosa com sua presença, grita e pede ao pai que o expulse. Este lança várias
maçãs contra o filho, que sente as feridas tanto físicas quanto
emocionais de se ver repelido por todos.
O
final da história é atroz: Grete, a irmã que antes da metamorfose sempre o
havia tratado de modo afetuoso e que, mesmo depois da transformação, nunca
havia realmente lhe dado as costas, expulsa Gregor de sua vida. Ele, já fraco –
o que se dá tanto pela má alimentação quanto pelo abalo psicológico que
recebera –, morre em seu quarto durante a noite.
É
preciso que isso vá para fora — exclamou a irmã de Gregor. — É o único meio,
pai. Você simplesmente precisa se livrar
do pensamento de que é Gregor. Nossa verdadeira infelicidade é termos
acreditado nisso até agora. Mas como é que pode ser Gregor? Se fosse Gregor, ele
teria há muito tempo compreendido que o convívio de seres humanos com um bicho
assim não é possível e teria ido embora voluntariamente. (KAFKA, 1997, p. 51).
A
morte de Gregor é julgada como uma libertação a todos. Como diz Modesto Carone:
“A novela termina, afinal, com a morte do protagonista — o que, tanto para os
pais como para a irmã, significa a libertação de um trambolho, que merece,
inclusive, ser comemorada com um passeio ao campo”. (CARONE, 2009, p. 21).
Quem
percebeu a morte de Gregor foi a faxineira Ana, que deu a ciência do
falecimento à família: “- Venham só ver uma coisa: ele empacotou! Está lá
empacotado de uma vez!” (KAFKA, 1997, p. 53). Com certa indiferença, a família
recebeu a notícia da morte de Gregor, que fora jogado no lixo pela faxineira.
A
família faz algo que há muito tempo não fazia: dá um passeio de bonde pelos
arredores da cidade. E nesse passeio, os pais percebem como sua filha havia se
convertido numa linda jovem, e que já estava na hora de encontrar um marido
para ela. Com esse final, o autor deixa implícita a intenção de os pais se
apoiarem financeiramente na filha em um futuro próximo.
O título original da obra,
escrita em língua alemã, é Die Verwandlung, cuja tradução literal é “A
Transformação”. Aliás, o livro trata não só da transformação biológica do
protagonista, Gregor Samsa, que se tornou um inseto monstruoso, como também de outras
transformações: pais que voltam a trabalhar para sustentar a família, que antes era
sustentada por Gregor; Gregor que, de provedor da casa, passa a ser um fardo,
um empecilho para a família; a transformação de Grete, de adolescente a uma
pessoa madura (cuida do irmão e trabalha); o amor de Grete por Gregor, no
início da novela, se transforma em ódio, a ponto de ela querer a eliminação de
seu irmão; a angústia da família se transforma em alívio com a morte de Gregor.
Daí algumas polêmicas entre
alguns tradutores e críticos literários, que entendem que Kafka estava se
referindo à transformação em sentido mais amplo, já que a língua alemã possui,
em seu léxico, o termo “Die Metamorphose”, em sentido restrito, referindo-se à
transformação biológica do protagonista em inseto monstruoso. O escritor
argentino Jorge Luís Borges achou um “disparate” traduzir Die Verwandlung
por A Metamorfose:
Yo traduje el libro de cuentos cuyo primer
título es La Trasformación y nunca supe por qué a todos les dio por
ponerle La Metamorfosis. Es un disparate, yo no sé a quién se le ocurrió
traducir así esa palabra del más sencillo alemán. Cuando trabajé con la obra el
editor insistió en dejarla así porque ya se había hecho famosa y se la
vinculaba a Kafka. (BORGES, 1983).
O livro A Metamorfose explora a solidão, os
sentimentos de exclusão e as crises do homem contemporâneo, sendo uma
referência da literatura universal para se abordar com profundidade aspectos
sociais. Nele, estão destacadas as contradições que envolvem as
relações humanas – quando a família descobre a transformação vivenciada por
Samsa, ele passa a ser desprezível e deve ser eliminado.
A
impotência de Gregor Samsa, por exemplo, perante ações que antes lhe eram
rotineiras como sair da cama ou caminhar, faz uma alusão às fraquezas humanas
diante de pressões sociais. O livro denuncia como a sociedade atual,
capitalista, restringe o valor do ser humano ao que ele produz e às aparências
– uma nítida associação do ser a um produto que pode
ser substituído por uma máquina ou algo semelhante.
3 Estranhamento e procedimento de singularização
Pretende-se,
neste tópico do artigo, compreender o procedimento da singularização, teoria
defendida pelo formalista russo Vítor Chklovski e exposta no ensaio “A arte
como procedimento”, publicado em 1917. Utilizam-se também, como fontes, outros
autores com a finalidade de reforçar o entendimento da teoria.
Há uma
questão com relação à tradução do termo russo “остранение”, utilizado por
Chklovski no texto original de 1917: singularização ou estranhamento? Com
relação a essa questão, a professora Olga Guerizoli-Kempinska, da Universidade
Fluminense, esclarece:
Viktor
Borisovitch Chklovski introduz pela primeira vez o termo “остранение”
(ostranienie), um neologismo formado a partir do adjetivo “странный” (strannyi)
e por isso escrito entre aspas. Como em russo “странный” significa “estranho”,
a tradução literal e segura de “странный” para o português é sem dúvida
“estranhamento”. Mas, devido a traduções indiretas, o termo de Chklovski é
também frequentemente transposto como “singularização”, palavra decalcada da
tradução francesa (TODOROV, 1965, p.82) e usada na tradução brasileira do texto
de Chklovski (OLIVEIRA TOLEDO, 1971, p. 39-56) e ainda como
“desfamiliarização”, decalcada da tradução em inglês. (GUERIZOLI-KEMPINSKA,
2010, p. 64).
Portanto,
por conta das traduções indiretas, pode-se usar indistintamente “estranhamento”
ou “singularização”. Outro termo também utilizado com o mesmo sentido é
“desautomatização”, criado pelo crítico literário tcheco Jan Mukařovský para
complementar as ideias de Chklovski, quando prega, em sua teoria da
atualização, que a percepção do leitor deve ser desautomatizada por meio de
deformidades da linguagem padrão (Mukařovský,
1967).
Utilizando-se
dos três termos - “estranhamento”, “singularização” e “desautomatização” -, o
crítico literário Ivan Teixeira define a principal função da arte:
Assim,
a principal função da arte seria restaurar a intensidade do conhecimento,
promovendo a virgindade dos contatos e o encanto da descoberta. Nesse sentido,
o artista deve criar situações inéditas e imprevistas, em busca da restauração
do ato de conhecer. Numa palavra, a finalidade da arte é gerar a
desautomatização, mediante o estranhamento ou a singularização da estrutura que
o artista oferece à contemplação. Se algo aspira à condição de enunciado
artístico, precisa ser dito de forma impressionante. Ao contrário do convívio cotidiano
com as coisas, o convívio com a arte deve ser particularizado, dificultoso e
lento. (TEIXEIRA, 1998, p. 37).
Chklovski
propõe uma visão diferenciada do procedimento da arte, tendo como base a
singularização e cita, em seu texto, vários exemplos para comprovar o seu
método. Refere-se a Leon Tolstoi, que se “serve constantemente do método de
singularização” (CHKLOVSKI, 1976, p. 46). Um desses métodos é a técnica de não
chamar determinado objeto pelo seu nome: omitir essa informação ao máximo, mas,
ao mesmo tempo, descrevê-lo como se tivesse sido visto pela primeira vez, a fim
de despertar uma curiosidade no leitor, causar um estranhamento, objetivando
fazer com que ele experimente uma sensação extremamente nova, em relação àquele
elemento familiar ao receptor. Menciona ainda o exemplo da novela Khostomer, de Tolstoi, na qual a
narrativa é conduzida por um cavalo, servindo-se desse ponto de vista como meio
de singularização dos hábitos humanos.
Nas
palavras de Vítor Chklovski (1976, p. 45):
O
objetivo da arte é dar a sensação do objeto como visão e não como
reconhecimento; o procedimento da arte é o procedimento da singularização dos
objetos e o procedimento que consiste em obscurecer a forma, aumentar a
dificuldade e a duração da percepção. O ato de percepção em arte é um fim em si
mesmo e deve ser prolongado; a arte é um meio de experimentar o devir do
objeto, o que é já “passado” não importa para a arte. (CHKLOVSKI, 1976, p. 45).
Em outras
palavras, pode-se dizer que a singularização é um processo que causa a
desautomatização da percepção adormecida pelos hábitos cotidianos, fazendo com
que o receptor reavalie suas expectativas e pré-conceitos e, também, a sua
própria percepção do mundo, ou seja, para Chklovski, o procedimento da
singularização consiste em modificar a forma para dificultar a percepção,
causando a notável sensação de estranhamento no receptor.
Na
literatura brasileira, há o exemplo de Memórias
Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis, em que a perspectiva de um
defunto é responsável pelo estranhamento do texto. Causa estranhamento, também,
o fato de a narrativa ser iniciada pelo fim da vida do protagonista,
contrariando o habitual, “o uso vulgar”, que seria a história iniciada pelo nascimento:
Suposto o uso vulgar
seja começar pelo nascimento, duas considerações me levaram a adotar diferente
método: a primeira é que eu não sou propriamente um autor defunto, mas um
defunto autor, para quem a campa foi outro berço; a segunda é que o escrito
ficaria assim mais galante e mais novo. (MACHADO DE ASSIS, 1962, p. 511).
Teixeira
(1998) cita outro exemplo machadiano de narrativa construída em conformidade
com o princípio da singularização. Trata-se da abertura do capítulo XI de O Alienista, cuja técnica conduz o
leitor ao centro da narrativa:
E
agora prepare-se o leitor para o mesmo assombro em que ficou a vila ao saber um
dia que os loucos da Casa Verde iam todos ser postos na rua.
-
Todos?
-
Todos.
- É
impossível; alguns sim, mas todos...
-
Todos. Assim o disse ele no ofício que mandou hoje de manhã à câmara. (MACHADO
DE ASSIS, 2004, p. 46).
Ivan
Teixeira comenta esse excerto de O
Alienista:
O
estranhamento provocado pelo texto decorre sobretudo da inclusão do leitor no
universo dos habitantes de Itaguaí, cujo espanto com o recolhimento dos loucos
fora tão grande quanto com a súbita libertação deles: conhecedor do assombro em
que vivia a cidade, o leitor é convidado a sentir o mesmo espanto dos
moradores, deixando a posição de espectador para assumir o estatuto de
personagem (leitor incluso). A desautomatização decorre também da reiteração
intensiva do vocábulo todos, pronunciado quatro vezes em diferentes tons de
surpresa. (TEIXEIRA, 1998, p. 38).
Na
literatura universal, há um exemplo interessante do uso da teoria da
singularização defendida por Chklovski. Trata-se do livro As Viagens de Gulliver, do escritor irlandês Jonathan Swift, em que
é narrada a história dos Houyhhnms,
cavalos dotados de raciocínio. O estranhamento está marcado pelo fato de que
numa terra desconhecida o cavalo é a espécie dominante, ao passo que o ser
humano é uma fera irracional. Recurso parecido com o adotado por Tolstoi na
novela Khostomer, em que um cavalo
inteligente conduz a narrativa criticando o baixo instinto animal dos seres
humanos.
Um
exemplo do procedimento da singularização na poesia é este texto de Manuel
Bandeira, cujo título é “Poema tirado de uma notícia de jornal”:
João
Gostoso era carregador de feira livre e morava no morro da/ Babilônia num
barracão sem número/ Uma noite ele chegou no bar Vinte de Novembro/ Bebeu/ Cantou/
Dançou/ Depois se atirou na lagoa Rodrigo de Freitas e morreu afogado. (BANDEIRA,
1966, p. 117).
Há uma
ambiguidade presente no poema, pois duas interpretações podem ser depreendidas:
João suicidou-se ou morreu em virtude de um acidente? Essa incerteza sobre a
razão da morte do personagem cria um estranhamento no leitor e permite que ele
o interprete da maneira que desejar.
O recurso
do estranhamento também é bastante utilizado em letras de música. O compositor
paraibano Chico César (2002) gravou uma música, cujo título é “Respeitem Meus
Cabelos, Brancos”. O procedimento de singularização consistiu na utilização da
vírgula entre as palavras “cabelos” e “brancos”, que quebrou o automatismo
habitual de uma frase bastante conhecida - “Respeitem meus cabelos brancos!” -,
utilizada quando alguém mais velho exige respeito de pessoas mais jovens. Na
letra de Chico César, o recurso utilizado modificou a oração que passou a
significar um protesto contra o preconceito racial.
A singularização, ou estranhamento,
seria uma forma de tirar a percepção do automatismo, ou seja, da tendência de,
com o hábito, tornarem automáticas as ações. Por exemplo, na visão maquinal de
um objeto conhecido, ele é considerado a partir de seu volume e pelo lugar que
ocupa, sendo reconhecido pelos primeiros traços. O reconhecimento se dá sem a
necessidade de uma observação atenta. “Os objetos muitas vezes percebidos
começam a ser percebidos como reconhecimento: o objeto se acha diante de nós,
sabemo-lo, mas não vemos” (Chklovski,
1976, p. 45).
Em
concordância com Chklovski, o crítico literário Ivan Teixeira reflete:
Chklovski
define a arte como a singularização de momentos importantes. Em rigor, os
momentos tornam-se importantes somente depois de submetidos ao processo de singularização
artística, porque, na vida prática, as coisas se tornam imperceptíveis em sua
totalidade. Movido pela pressa e pelo empenho em imediatizar o cotidiano, o
homem acaba por perder a consciência individual das ações, dos objetos e das
situações. (TEIXEIRA, 1998, p. 36-37).
4 Análise
Na novela A Metamorfose, Franz Kafka utiliza a
técnica do estranhamento, que já se observa no primeiro parágrafo da obra, que
já contém o clímax da trama:
Quando certa manhã
Gregor Samsa acordou de sonhos intranquilos, encontrou-se em sua cama
metamorfoseado num inseto monstruoso. Estava deitado sobre suas costas duras
como couraça e, ao levantar um pouco a cabeça, viu seu ventre abaulado, marrom,
dividido por nervuras arqueadas, no topo de qual a coberta, prestes a deslizar
de vez, ainda mal se sustinha. Suas numerosas pernas, lastimavelmente finas em
comparação com o volume do resto do corpo, tremulavam desamparadas diante dos
seus olhos. (KAFKA, 1997, p. 6).
Trata-se de uma cena
impactante em um dos parágrafos mais marcantes
da literatura ocidental. Está estampado no encarte especial da Folha de São
Paulo, de 31 de outubro de 2015, alusivo ao centenário da obra: “Há cem anos, A Metamorfose abalava a literatura com
apenas um parágrafo” (COLOMBO, 2015). Esse impacto se dá em função da técnica
da inversão, que seria um procedimento da singularização adotado por Kafka. Contrariando
o convencionalismo literário, em que o clímax é projetado para o final, o auge
da narrativa é antecipado. Vê-se em Kafka um escritor que puxa do fim para o
começo o clímax que é a metamorfose, “ou seja: aqui a coisa narrada não caminha
para o auge, ela se inicia com ele” (CARONE, 2009, p. 32).
Essa
técnica da inversão causa o efeito de estranhamento preconizado por Chklovski,
pois impacta o leitor, envolvendo-o do início ao fim da narrativa. Modesto
Carone, um dos principais tradutores de Kafka no Brasil, refere-se a esse
efeito de estranhamento como “efeito de choque”:
O
fascínio se deve antes ao efeito de choque, que desde a primeira frase a novela
provoca na mente do leitor. Pois já nas primeiras linhas do texto se manifesta
a colisão entre a linguagem tipicamente cartorial, de protocolo, e o
pressuposto inverossímil da coisa narrada. (CARONE, 2009, p. 12).
Na citação,
Carone faz menção à linguagem protocolar adotada por Kafka em suas obras, e
especialmente em A Metamorfose. A
linguagem protocolar se caracteriza pelo fato de ser impessoal, ora culta, ora
coloquial, porém acessível ao leitor comum. A maneira lenta como a narração se
desenvolve com um nível excessivo de descrição, a atmosfera e a agonia são os
artifícios linguísticos usados por Kafka em suas obras. Esse mecanismo aproxima
e diminui a distância entre o leitor e a obra, causando indiscutivelmente um
estranhamento grande no leitor. Essa linguagem é também conhecida como
cartorial, o que tem a ver com a formação acadêmica de Kafka, bacharel em
direito, que foi advogado de uma empresa de seguros. Acostumado, portanto, a
descrever e processar sinistros, é possível que esses relatos tenham
influenciado a sua escrita. Ou seja, fatos graves são descritos com normalidade
habitual, como sói acontecer com profissionais que são obrigados a descrever cotidianamente
cenas trágicas como parte de seu trabalho – policiais, peritos criminais,
médicos etc. Como diz o filósofo gaúcho Diego Süss Endler:
Essa
dicotomia entre o estranhamento e a normalidade habitual faz com que o escritor
desenvolva uma característica extremamente peculiar em suas obras, pois choca o
leitor ao descrever seus personagens em situações inimagináveis, vivenciando-as
com desídia e indiferença, como se fosse algo comum e corriqueiro. (ENDLER,
2011, p. 80).
No
fragmento em que a faxineira Ana encontra Gregor morto, a descrição de Kafka em
linguagem protocolar, descrevendo o insólito como habitual, choca o leitor:
Quando
a faxineira chegou de manhã cedo — a partir da sua chegada não era mais
possível nenhum sono tranquilo na casa inteira, tal a força e a pressa com que
batia todas as portas, por mais que lhe tivessem pedido que evitasse fazer
isso, — ela não descobriu, a princípio, nada de especial na curta e costumeira
visita a Gregor. Pensou que ele estava deitado ali premeditadamente imóvel e
que fazia o papel de ofendido, pois lhe creditava todo o entendimento possível.
Por estar casualmente segurando na mão a vassoura de cabo comprido, tentou, da
porta, fazer cócegas com ela em Gregor. Quando isso também não deu resultado,
ficou irritada, espetou Gregor um pouco e só depois que o havia empurrado do
lugar sem achar resistência é que prestou mais atenção. Ao reconhecer a verdade
dos fatos arregalou os olhos, deu um assobio, mas não se deteve muito tempo:
escancarou a porta do quarto de dormir e bradou em voz alta para dentro do escuro:
— Venham só ver uma coisa: ele empacotou! Está lá empacotado de uma vez! (KAFKA, 1997, p. 53).
Em
seguida a lastimável cena, descrita em linguagem seca por Kafka, quando a
faxineira se dirige à mãe de Gregor informando-lhe, de forma desprezível, que
seu filho fora descartado na lata de lixo: “— Ah, sim — respondeu a faxineira,
que por causa do riso amigável não pôde continuar falando. — A senhora não
precisa se preocupar com o jeito de jogar fora a coisa aí do lado. Já está tudo
em ordem”. (KAFKA, 1997, p. 56). Nessa cena do descarte de Gregor, Kafka desautomatiza
a percepção do leitor, causando-lhe estranhamento e fazendo-o refletir sobre a
repulsa e o desprezo ao ser humano.
Uma das
cenas mais tensas do livro é a que Gregor sai do seu quarto rastejando,
assustando a sua irmã e a sua mãe. Seu pai, ao chegar em casa, ataca o filho
com maçãs até que ele retorne ao seu quarto:
...quando nesse momento alguma coisa, atirada de leve, voou bem ao seu
lado e rolou diante dele. Era uma maçã; a segunda passou voando logo em seguida
por ele; Gregor ficou paralisado de susto; continuar correndo era inútil, pois
o pai tinha decidido bombardeá-lo. Da fruteira em cima do bufê ele havia
enchido os bolsos de maçãs e, por enquanto sem mirar direito, as atirava uma a
uma. As pequenas maçãs vermelhas rolavam como que eletrizadas pelo chão e
batiam umas nas outras. Uma maçã atirada sem força, raspou as costas de Gregor,
mas escorregou sem causar danos. Uma que logo se seguiu, pelo contrário,
literalmente penetrou nas costas dele. (KAFKA, 1997, p. 38).
Kafka, em procedimento de
singularização, chama a atenção para um detalhe insólito com o fim de desautomatizar a percepção por meio de um
objeto - a maçã, que ficou encrustada no dorso de Gregor. Essa maçã causou-lhe
um grave ferimento, provocando-lhe dores físicas insuportáveis e dificultando
seus movimentos. Impedido de se comunicar, Gregor sofre com essas dores até seu
último dia. A maçã alojada na carne foi a causa da morte física de Gregor, enquanto
a falta de solidariedade, a falta de amor ao próximo e o desprezo, a causa
psicológica de sua morte.
É característico da obra
kafkiana o absurdo, que deforma suas histórias, personagens, ambientes e
narrativas. Ao longo de A Metamorfose,
essa característica está presente do início ao fim da narrativa – a descrição
da transformação em inseto monstruoso, a descrição do quarto de Gregor, a
tentativa de o protagonista querer fugir de seu quarto, o desprezo e o alívio
que sua família sente após a sua morte.
Para o
filósofo da Escola de Frankfurt, Theodor Adorno, a história é absurda, no
entanto, é narrada com uma naturalidade espantosa:
(...)
em Kafka não é o mundo monstruoso que choca, e sim a naturalidade quase
sorridente com que esse mundo monstruoso é apresentado, a maneira quase
desumana, sóbria, calma e serena, com que as coisas mais monstruosas são focalizadas.
(ADORNO, 1962, p. 132).
Pode-se
dizer que a ficção absurda de Kafka é a precursora do realismo mágico, e o
livro A Metamorfose influenciou a
obra de Gabriel García Márquez, como ele próprio afirmou em uma entrevista
concedida à revista literária The Paris
Review, em 1981:
I went back to the pension where I was staying and
began to read The Metamorphosis. The first line almost knocked me
off the bed. I was so surprised. The first line reads, ‘As Gregor Samsa awoke
that morning from uneasy dreams, he found himself transformed in his bed into a
gigantic insect...’ When I read the line I thought to myself that I didn’t know
anyone was allowed to write things like that. If I had known, I would have
started writing a long time ago.[3]
(MÁRQUEZ, 1981).
Por
influência do livro A Metamorfose, pode-se
dizer que a obra de Gabriel García Márquez é acentuadamente marcada pelo
estranhamento e o procedimento da singularização, como se constata no livro Cem Anos de Solidão, até hoje
considerado o protótipo do realismo mágico. A ficção kafkiana, conforme Backes
(2007, p. 39), contribuiu, de algum modo, para o desenvolvimento do realismo
mágico e da própria literatura latino-americana.
5 Conclusão
Cotejando o estudo da teoria da singularização com a obra A Metamorfose, de Franz Kafka,
conclui-se que o autor tcheco produziu um livro que provoca no leitor, desde as
primeiras linhas até os fragmentos derradeiros, o estranhamento preconizado por
Vitor Chklovski.
Típico do
procedimento da singularização é a desautomatização da percepção adormecida
pelos hábitos cotidianos. E Kafka adotou a desautomatização ao tratar com naturalidade
o elemento insólito, que foi, logo no primeiro parágrafo, o estranhamento ao
descrever detalhadamente o momento grotesco em que o protagonista Gregor Samsa
acorda transformado num inseto asqueroso.
O
procedimento da singularização também é constatado pelo uso de sua técnica de
redação - principalmente a inversão lógica da narrativa, quando o clímax surge
no primeiro parágrafo do texto - e da linguagem protocolar, seca, utilizada
numa narração que se desenvolve de forma lenta com um nível elevado de
descrição, que envolve o leitor do início ao fim da novela.
O
estranhamento provocado pela obra de Kafka e a desautomatização das cenas do
livro, que são narradas com naturalidade, chamaram à atenção de Gabriel García Márquez,
que, confessadamente, admitiu a influência de A Metamorfose em seus escritos. Pode-se dizer que A Metamorfose contribuiu para o
surgimento do realismo mágico e o desenvolvimento da literatura
latino-americana.
REFERÊNCIAS
ADORNO,
Theodor W. Notas de literatura. Barcelona: Ariel, 1962.
BACKES,
Marcelo. A teia kafkiana. Entre Livros.
São Paulo, ano 3, n.27, p. 36-39, julho 2007.
BANDEIRA,
Manuel. "Libertinagem". Estrela da vida inteira. Rio de
Janeiro: José
Olympio, 1966.
Olympio, 1966.
BORGES, Jorge Luis. Un sueño eterno. El País, Espanha, 3.jul 1983. Disponível
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[1] Graduando em Letras Língua e
Literatura Espanholas (Ufrn)
[2] Franz Kafka nasceu em Praga, no dia 3
de julho de 1883. Nesse tempo, a cidade fazia parte do Império Austro-Húngaro.
Hoje, Praga é a capital da República Tcheca. Franz Kafka faleceu no dia 3 de
junho de 1924, na cidade de Klosternburg, Áustria.
[3]
“Retornava para a pensão onde
estava hospedado e comecei a ler A
Metamorfose. A primeira linha da narrativa quase me fez cair da cama.
Fiquei bastante impressionado. A primeira linha se lê: ‘Quando certa manhã
Gregor Samsa acordou de sonhos intranquilos, encontrou-se em sua cama metamorfoseado
num inseto gigante...’. Quando li isso, pensei comigo que não sabia que era
possível escrever dessa forma. Se soubesse, teria começado a escrever assim há
muito tempo”. (tradução nossa).
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