domingo, 15 de dezembro de 2013

A GEOGRAFIA NA LITERATURA DE JOSÉ LINS DO REGO



Breve introito
            Quando se fala sobre relações entre os ramos do conhecimento, a princípio vislumbra-se desde já a noção de sistema e complexidade do mundo pós-moderno.
            O porquê de tantas construções teóricas é o que faz a atividade reflexiva sistematizar ideias e conceitos.
            Assim, quando estamos diante de temas tão diversos, como Literatura e Geografia, é necessário entender que ao mesmo tempo aparentemente diferentes, são ligados e conectados sob diversas formas.
            Explica-se isso quando vemos as transformações sofridas pelas artes, a literatura criadora se configura como um elemento confirmador de tais mudanças.
            Ao contrário do que muita gente pensa, a literatura deixou de ser pensada sob a óptica da mera produção e digamos contemplação neutra.
            Há um sentido novo na visão atual do que vem a ser literatura, quando ela passa a ser vista sob outras perspectivas como não só canal de emoções e desejos, mas também de interpretação e crítica da realidade social.
            Intrinsecamente ligada a tudo, ou quase tudo, a literatura não é esperada nem vista como contemplação ou venda de ilusão em capítulos ou formas poéticas.
            A busca hoje é pela práxis pelo fazer e até certo ponto abrir os olhos do leitor, que sendo crítico pode refletir sobre suas posições e não o sendo, o faz mergulhar no tormentoso campo da reflexão proativa.
            Todo o contexto atual é para enfatizar que a sociedade se industrializa, a atividade humana se “desumaniza”. Então, a partir dai a literatura vai  abandonando a imagem neutra, o artista só “artista”, delineando-se no seu estandarte críticas e novas construções para a nova realidade ou novas parametrizações de conceitos e modos de vida.
            Embates de arte pela arte contra a arte engajada estão a cada dia mais polarizados, posto que tal discussão está no cerne do próprio movimento literário.
            Essa simetria é problemática, mas não incontornável.
            Ora, não se imagina o literata e sua obra como livres de influências, tão pouco não se deve sacrificar o trabalho proposto numa obra literária em prol de ativismo.
            Há que existir convivência e delimitação do que seja isso ou aquilo para não cairmos no campo do patrulhamento ideológico dos dois lados antagônicos, ou seja, o da literatura “pura” e o da literatura “engajada”.            
É por isso que modernamente, em face da procura de atualizadas formas de compreensão do mundo a nossa volta, a ação e procura crescente em atender e replicar às questões atuais presentes na ciência fortaleceu a aproximação entre a Geografia e a Literatura.
 Aos geógrafos oportuniza-se uma grande variedade de alternativas, onde a é a abordagem cultural demarca a literatura como uma das saídas, sem subterfúgios,  para compreender as relações humanas influenciando sem dúvida na própria organização espacial.
Chaui (2012) assevera bem o mote dessa nova preocupação. Para esta autora, por exemplo,
“A discussão sobre a relação arte-sociedade levou a duas atitudes filosóficas opostas: a que afirma que a arte só é arte se for pura, isto é, se não estiver preocupada com as circunstâncias históricas, sociais, econômicas e políticas – a “arte pela arte” -, e a que afirma que o valor da obra de arte decorre de seu compromisso crítico diantes das circunstâncias presentes. Trata-se da ‘arte engajada’, na qual o artista toma posição diante de sua sociedade, luta para transformá-la e melhorá-la, e para conscientizar as pessoas sobre as injustiças e as opressões do presente.” (CHAUI, 2012, P. 255)

            Tal posicionamento quanto a associação da literatura e Geografia interpretação  tornam-se, para o geógrafo humanístico matéria investigativa, pois são evidenciados a condição humana, as mazelas sociais,  econômicas e até as diferentes meios físicos de determinada área retratada. Por ser assim, é inconteste que a obra literária testemunha a realidade, associa grupos humanos em determinado lugar.

Nesse diapasão, citando Wanderley (1998), Olanda & Almeida (2008) assim se manifestam:
(...) Com suas criações os escritores refletem uma visão de vida, de espaço, de homem e de lugares de uma determinada sociedade em certo período. Assim posto, as obras literárias revelam-se fontes para a compreensão da experiência humana. Estudos por Wanderley (1998)









A evolução conectiva Literatura x Geografia

            A Literatura é parte integrante de nossas vidas e ao mesmo tempo é instrumento para a aquisição de conhecimento nas áreas do saber, dentre eles o geográfico.
            A Geografia atual se imbrica mesmo com a Literatura e traz ou provoca respostas aos desafios diante de tantas complexidades do mundo do conhecimento.
            Na obra de José Lins do Rego, no caso o romance Menino de Engenho, fica evidente e cadenciado que o texto ali desenvolvido confirma a ideia.
            Ali dentro do universo complexo e heterogêneo do Nordeste, dialeticamente a narrativa transfere uma concepção dolorosa e paralelamente melodiosa do mundo dos engenhos.
            Castello (1979), na introdução do Menino de Engenho,  salienta questionando :
Teria sido essa obra geratriz. Menino de engenho, determinada somente pela exigência da memória ou teria sido algum estímulo literário no sentido de acentuar contrastes de perspectivas da experiência de uma mesma idade? (CASTELLO, 1979, P.X)
(...)
Ao contrário, com José Lins do Rego, o romance que escreve se impregna de ternura e intensa de ternura e intensa humanidade, realmente dominado pela nostalgia do ambiente do engenho sob a decadência do poderio da civilização açucareira (CASTELLO, 1979, p. XI)

            É nesse tom que bem esclarece Claval (1999,p.55),quando explana:
O romance torna-se algumas vezes um documento: a intuição sutil dos romancistas nos ajuda a perceber a região (grifei) pelos olhos dos personagens e através de suas emoções. Os trabalhos sobre o sentido dos lugares (grifei) e sobre aquilo que a literatura ensina a este respeito são numerosos no mundo anglo-saxão desde o início dos anos 1970.

            O que fica bem evidente é que a cadência da narrativa em Menino de Engenho consiste na apreensão também de aspectos geográficos, onde a região se encontra e se define em contrastes constantes. Há a potência da cana-de-açúcar, mas ao mesmo tempo fatos ligados a seca.
           


Para atestar todo o acima exposto, vejamos alguns excertos do livro Menino de Engenho para chegarmos ao fim a  um arremate conclusivo:

Daquele banho ainda hoje guardo na lembrança à flor da pele. De fato que para mim, que criara nos banhos de chuvisco, aquela piscina cercada de mata verde, sombreada por uma vegetação ramalhuda, só poderia ser uma coisa do outro mundo. (p. 11)
No texto acima, sutilmente, comparando ao que se tem hoje, podemos refletir numa leitura crítica sobre a escassez e poluição da água. Não temos hoje uma descrição tão límpida dos recursos naturais em face da degradação ambiental.
Sob os olhos do Escritor e menino de engenho aparece um símbolo místico do real e também imaginário micro universo da violência inserta no semiárido nordestino. Como provocação há uma linha de lembrança quase romântica do que seria um fora da lei daquela época se compararmos a atualidade, como colhemos abaixo:
Para os meninos, a presença de Antônio Silvino era como se fosse a de um rei das nossas histórias, que nos marcasse uma visita. Um dos nossos brinquedos mais preferidos era até o de fingirmos de bando de cangaceiros, com espadas de pau e cacetes no ombro, e o mais forte dos nossos fazendo de Antônio Silvino. (p.18)
            É indubitável a beleza narrativa pensada sob a óptica geográfica, quando num trecho só, o autor engloba manifestações relativas ao solo, formações vegetais, água, economia, climatologia, dentre outros fenômenos peculiares a região onde se desencadeia a trama memorialista:
Lá um dia, para as cordas das nascentes do Paraíba, via-se, quase rente do horizonte, um abrir longínquo e espaçado de relâmpago: era inverno na certa no alto sertão. As experiências confirmavam que com duas semanas o Paraíba apontaria na várzea com a sua primeira cabeça-d’água. O rio no verão ficava seco de se atravessar a pé enxuto. Apenas, aqui e ali, pelo seu leito, formavam-se grandes poços, que venciam a estiagem. Nestes pequenos açudes se pescava, lavavam-se os cavalos, tomavam-se banho. Nas vazantes plantavam batata-doce e cavavam pequenas cacimbas para o abastecimento de gente que vinha das caatingas, andando léguas, de pote na cabeça. O seu leito de areia branca cobria-se de salsas e junco verde-escuro, enquanto pelas margens os marizeiros davam uma sombra camarada nos meios-dias. Nas grandes secas o povo pobre vivia da água salobra e das vazantes do Paraíba. O gado vinha entreter a sua fome no capim ralo que crescia por ali. Com a notícia dos relâmpagos nas cabeceiras, entraram a arrancar as batatas e os jerimuns das vazantes. (p.24)

Logo adiante se vê:
Meu avô, em pé, olhava de uma ponta da calçada as suas plantas de cana submersas, a sua safra quase toda perdida. Mas não se lastimava, porque sabia que riqueza em limo lhe trouxera o rio para suas terras. Ele mesmo dizia. (p.28)


A tragédia ambiental também lastreia o romance com suas consequências, assim exposta:
O engenho e a casa de farinha repletos de flagelados. Era a população das margens do rio, arrasada, morta de fome, se não fossem o bacalhau e a farinha seca da fazenda. Conversaram sobre os incidentes da enchente, achando graça até nas peripécias de salvamento. (p.31)
Até aspectos que retratam temas relativos a infraestrutura a condução narrativa mostra um tempo em que o sistema de transporte no Brasil tinha um bom referencial para atender as suas necessidades. Vemos isso, quando o texto apresenta relatos assim:
A estrada de ferro passava no outro lado do rio.
Do engenho nós ouvíamos o trem apitar, e fazia-se de sua passagem uma espécie de relógio de todas as atividades: antes do trem das dez, depois do trem das duas. (p.45)
A riqueza da obra de José Lins do Rego
Restava ainda a senzala dos tempos do cativeiro.
Uns vinte quadros com o mesmo alpendre na frente. As negras do meu avô, mesmo depois da abolição, ficaram todas no engenho, não deixaram a rua, como elas chamavam a senzala. (p.54)
E lá para frente, numa brilhante comunhão entre a Literatura e Geografia, a beleza do texto prova com maestria a perfeita e necessária conexão dos dois ramos de saberes:
O santa Fé, porém, resistira a essa sua fome de latifúndios. Sempre que via aqueles condados na geografia (grifei), espremidos entre grandes países, me lembrava do Santa Fé. (p.76)



Em conclusão

            Pelo acima exposto, é indiscutível que o arcabouço literário proposto por José Lins do Rego na obra em comento, apresenta diversos momentos onde se misturam o literata ao mundo do geógrafo.
            Em síntese, o Menino de Engenho aborda a seca, o coronelismo, exploração,  movimentos migratórios, família patriarcal, fanatismo religioso, crise dos engenhos, ascensão social,  o cangaço, numa atmosfera pitoresca recheada de uma envolvente narrativa, mas que dentro de uma visão geográfica, não necessariamente intencional, mas que enriquece a visão holística que temos de ter, haja vista as conexões tão evidentes entre os  diversos ramos do conhecimento.
            Obviamente que não se sabe, repito,  se intencionalmente, mas a Geografia aparece com vigor na descrição contida, quando o curso do romance se desencadeia dentro de uma paisagem inserida num território delineado, onde o espaço vivido numa específica região.


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