Breve introito
Quando se fala sobre relações entre os ramos do
conhecimento, a princípio vislumbra-se desde já a noção de sistema e
complexidade do mundo pós-moderno.
O porquê de tantas construções teóricas é o que faz a
atividade reflexiva sistematizar ideias e conceitos.
Assim, quando estamos diante de temas tão diversos, como
Literatura e Geografia, é necessário entender que ao mesmo tempo aparentemente
diferentes, são ligados e conectados sob diversas formas.
Explica-se isso quando vemos as transformações sofridas
pelas artes, a literatura criadora se configura como um elemento confirmador de
tais mudanças.
Ao contrário do que muita gente pensa, a literatura
deixou de ser pensada sob a óptica da mera produção e digamos contemplação
neutra.
Há um sentido novo na visão atual do que vem a ser
literatura, quando ela passa a ser vista sob outras perspectivas como não só
canal de emoções e desejos, mas também de interpretação e crítica da realidade
social.
Intrinsecamente ligada a tudo, ou quase tudo, a
literatura não é esperada nem vista como contemplação ou venda de ilusão em
capítulos ou formas poéticas.
A busca hoje é pela práxis pelo fazer e até certo ponto
abrir os olhos do leitor, que sendo crítico pode refletir sobre suas posições e
não o sendo, o faz mergulhar no tormentoso campo da reflexão proativa.
Todo o contexto atual é para enfatizar que a sociedade se
industrializa, a atividade humana se “desumaniza”. Então, a partir dai a
literatura vai abandonando a imagem
neutra, o artista só “artista”, delineando-se no seu estandarte críticas e
novas construções para a nova realidade ou novas parametrizações de conceitos e
modos de vida.
Embates de arte pela arte contra a arte engajada estão a
cada dia mais polarizados, posto que tal discussão está no cerne do próprio
movimento literário.
Essa simetria é problemática, mas não incontornável.
Ora, não se imagina o literata e sua obra como livres de
influências, tão pouco não se deve sacrificar o trabalho proposto numa obra
literária em prol de ativismo.
Há que existir convivência e delimitação do que seja isso
ou aquilo para não cairmos no campo do patrulhamento ideológico dos dois lados
antagônicos, ou seja, o da literatura “pura” e o da literatura “engajada”.
É
por isso que modernamente, em face da procura de atualizadas formas de
compreensão do mundo a nossa volta, a ação e procura crescente em atender e
replicar às questões atuais presentes na ciência fortaleceu a aproximação entre
a Geografia e a Literatura.
Aos geógrafos oportuniza-se uma grande variedade
de alternativas, onde a é a abordagem cultural demarca a literatura como uma
das saídas, sem subterfúgios, para
compreender as relações humanas influenciando sem dúvida na própria organização
espacial.
Chaui
(2012) assevera bem o mote dessa nova preocupação. Para esta autora, por
exemplo,
“A
discussão sobre a relação arte-sociedade levou a duas atitudes filosóficas
opostas: a que afirma que a arte só é arte se for pura, isto é, se não estiver
preocupada com as circunstâncias históricas, sociais, econômicas e políticas –
a “arte pela arte” -, e a que afirma que o valor da obra de arte decorre de seu
compromisso crítico diantes das circunstâncias presentes. Trata-se da ‘arte
engajada’, na qual o artista toma posição diante de sua sociedade, luta para
transformá-la e melhorá-la, e para conscientizar as pessoas sobre as injustiças
e as opressões do presente.” (CHAUI, 2012, P. 255)
Tal posicionamento quanto a associação da literatura e Geografia
interpretação tornam-se, para o geógrafo
humanístico matéria investigativa, pois são evidenciados a condição humana, as
mazelas sociais, econômicas e até as
diferentes meios físicos de determinada área retratada. Por ser assim, é
inconteste que a obra literária testemunha a realidade, associa grupos humanos em
determinado lugar.
Nesse
diapasão, citando Wanderley (1998), Olanda & Almeida (2008) assim se
manifestam:
(...)
Com suas criações os escritores refletem uma visão de vida, de espaço, de homem
e de lugares de uma determinada sociedade em certo período. Assim posto, as
obras literárias revelam-se fontes para a compreensão da experiência humana.
Estudos por Wanderley (1998)
A evolução conectiva Literatura x
Geografia
A Literatura é parte integrante de nossas vidas e ao
mesmo tempo é instrumento para a aquisição de conhecimento nas áreas do saber,
dentre eles o geográfico.
A Geografia atual se imbrica mesmo com a Literatura e
traz ou provoca respostas aos desafios diante de tantas complexidades do mundo
do conhecimento.
Na obra de José Lins do Rego, no caso o romance Menino de
Engenho, fica evidente e cadenciado que o texto ali desenvolvido confirma a
ideia.
Ali dentro do universo complexo e heterogêneo do
Nordeste, dialeticamente a narrativa transfere uma concepção dolorosa e
paralelamente melodiosa do mundo dos engenhos.
Castello (1979), na introdução do Menino de Engenho, salienta
questionando :
Teria
sido essa obra geratriz. Menino de engenho, determinada somente pela exigência
da memória ou teria sido algum estímulo literário no sentido de acentuar
contrastes de perspectivas da experiência de uma mesma idade? (CASTELLO, 1979,
P.X)
(...)
Ao
contrário, com José Lins do Rego, o romance que escreve se impregna de ternura
e intensa de ternura e intensa humanidade, realmente dominado pela nostalgia do
ambiente do engenho sob a decadência do poderio da civilização açucareira
(CASTELLO, 1979, p. XI)
É nesse tom que bem esclarece Claval (1999,p.55),quando
explana:
O
romance torna-se algumas vezes um documento: a intuição sutil dos romancistas
nos ajuda a perceber a região (grifei)
pelos olhos dos personagens e através de suas emoções. Os trabalhos sobre o sentido dos lugares (grifei) e sobre
aquilo que a literatura ensina a este respeito são numerosos no mundo
anglo-saxão desde o início dos anos 1970.
O que fica bem evidente é que a cadência da narrativa em
Menino de Engenho consiste na apreensão também de aspectos geográficos, onde a
região se encontra e se define em contrastes constantes. Há a potência da
cana-de-açúcar, mas ao mesmo tempo fatos ligados a seca.
Para
atestar todo o acima exposto, vejamos alguns excertos do livro Menino de
Engenho para chegarmos ao fim a um
arremate conclusivo:
Daquele
banho ainda hoje guardo na lembrança à flor da pele. De fato que para mim, que
criara nos banhos de chuvisco, aquela piscina cercada de mata verde, sombreada
por uma vegetação ramalhuda, só poderia ser uma coisa do outro mundo. (p. 11)
No
texto acima, sutilmente, comparando ao que se tem hoje, podemos refletir numa
leitura crítica sobre a escassez e
poluição da água. Não temos hoje uma descrição tão límpida dos recursos
naturais em face da degradação ambiental.
Sob
os olhos do Escritor e menino de engenho aparece um símbolo místico do real e
também imaginário micro universo da violência inserta no semiárido nordestino.
Como provocação há uma linha de lembrança quase romântica do que seria um fora
da lei daquela época se compararmos a atualidade, como colhemos abaixo:
Para
os meninos, a presença de Antônio Silvino era como se fosse a de um rei das
nossas histórias, que nos marcasse uma visita. Um dos nossos brinquedos mais
preferidos era até o de fingirmos de bando de cangaceiros, com espadas de pau e
cacetes no ombro, e o mais forte dos nossos fazendo de Antônio Silvino. (p.18)
É indubitável a beleza narrativa pensada sob a óptica
geográfica, quando num trecho só, o autor engloba manifestações relativas ao
solo, formações vegetais, água, economia, climatologia, dentre outros fenômenos
peculiares a região onde se desencadeia a trama memorialista:
Lá
um dia, para as cordas das nascentes do Paraíba, via-se, quase rente do
horizonte, um abrir longínquo e espaçado de relâmpago: era inverno na certa no
alto sertão. As experiências confirmavam que com duas semanas o Paraíba
apontaria na várzea com a sua primeira cabeça-d’água. O rio no verão ficava
seco de se atravessar a pé enxuto. Apenas, aqui e ali, pelo seu leito,
formavam-se grandes poços, que venciam a estiagem. Nestes pequenos açudes se
pescava, lavavam-se os cavalos, tomavam-se banho. Nas vazantes plantavam
batata-doce e cavavam pequenas cacimbas para o abastecimento de gente que vinha
das caatingas, andando léguas, de pote na cabeça. O seu leito de areia branca cobria-se
de salsas e junco verde-escuro, enquanto pelas margens os marizeiros davam uma
sombra camarada nos meios-dias. Nas grandes secas o povo pobre vivia da água
salobra e das vazantes do Paraíba. O gado vinha entreter a sua fome no capim
ralo que crescia por ali. Com a notícia dos relâmpagos nas cabeceiras, entraram
a arrancar as batatas e os jerimuns das vazantes. (p.24)
Logo
adiante se vê:
Meu
avô, em pé, olhava de uma ponta da calçada as suas plantas de cana submersas, a
sua safra quase toda perdida. Mas não se lastimava, porque sabia que riqueza em
limo lhe trouxera o rio para suas terras. Ele mesmo dizia. (p.28)
A
tragédia ambiental também lastreia o romance com suas consequências, assim
exposta:
O
engenho e a casa de farinha repletos de flagelados. Era a população das margens
do rio, arrasada, morta de fome, se não fossem o bacalhau e a farinha seca da
fazenda. Conversaram sobre os incidentes da enchente, achando graça até nas
peripécias de salvamento. (p.31)
Até
aspectos que retratam temas relativos a infraestrutura a condução narrativa
mostra um tempo em que o sistema de transporte no Brasil tinha um bom
referencial para atender as suas necessidades. Vemos isso, quando o texto apresenta
relatos assim:
A
estrada de ferro passava no outro lado do rio.
Do
engenho nós ouvíamos o trem apitar, e fazia-se de sua passagem uma espécie de
relógio de todas as atividades: antes do trem das dez, depois do trem das duas.
(p.45)
A
riqueza da obra de José Lins do Rego
Restava
ainda a senzala dos tempos do cativeiro.
Uns
vinte quadros com o mesmo alpendre na frente. As negras do meu avô, mesmo
depois da abolição, ficaram todas no engenho, não deixaram a rua, como elas
chamavam a senzala. (p.54)
E
lá para frente, numa brilhante comunhão entre a Literatura e Geografia, a
beleza do texto prova com maestria a perfeita e necessária conexão dos dois
ramos de saberes:
O
santa Fé, porém, resistira a essa sua fome de latifúndios. Sempre que via
aqueles condados na geografia (grifei),
espremidos entre grandes países, me lembrava do Santa Fé. (p.76)
Em conclusão
Pelo acima exposto, é indiscutível que o arcabouço
literário proposto por José Lins do Rego na obra em comento, apresenta diversos
momentos onde se misturam o literata ao mundo do geógrafo.
Em síntese, o Menino de Engenho aborda a seca, o coronelismo, exploração, movimentos migratórios, família patriarcal, fanatismo
religioso, crise dos engenhos, ascensão social,
o cangaço, numa atmosfera pitoresca recheada de uma envolvente
narrativa, mas que dentro de uma visão geográfica, não necessariamente
intencional, mas que enriquece a visão holística que temos de ter, haja vista
as conexões tão evidentes entre os
diversos ramos do conhecimento.
Obviamente
que não se sabe, repito, se
intencionalmente, mas a Geografia aparece com vigor na descrição contida,
quando o curso do romance se desencadeia dentro de uma paisagem inserida num território
delineado, onde o espaço vivido numa
específica região.
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